No dia de hoje, há 22 anos, no final da tarde do dia 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes foi covardemente assassinado em Xapuri. Mas seu legado permanece sendo construído em toda a Amazônia. Hoje, 30% da Amazônia está sob gestão comunitária de índios e extrativistas. Em 2010, 21 Reservas Extrativistas receberam a Concessão de Direito Real de Uso. Em 2011 vamos retomar o projeto de educação que ele iniciou em 1981, com o ”Projeto Seringueiro”, em Xapuri, no Acre.
Em sua homenagem, transcrevo um tópico da minha tese de doutorado “A Construção Social de Políticas Ambientais – Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros” com a descrição do primeiro dia de aula na primeira escola de alfabetização de adultos que construímos no Seringal Nazaré, Colocação Independência, Chico, Raimundão, Ronaldo, Marlete e os alunos da escolas, alguns deles hoje professores na Reserva Extrativista Chico Mendes.
“PROJETO SERINGUEIRO
Nas várias entrevistas que deu em sua vida, Chico Mendes sempre se referiu à ausência de escolas nos seringais como um dos elementos centrais do processo de dominação dos seringueiros pelos patrões. Durante gerações, o analfabetismo contribuiu para consolidar a idéia de que o mundo se organizava em patrões e fregueses, reproduzindo uma estrutura social desigual e injusta. Em todo o período em que predominou o extrativismo da borracha na Amazônia, não houve investimento do poder público para mudar esse quadro. Essa situação gerou, para os seringueiros, uma idéia ambígua: ao mesmo tempo em que dão grande valor ao conhecimento, ao saber, como dizem, sempre consideraram o acesso à educação um objetivo inalcançável.
Chico Mendes identificou dois fatores como responsáveis pela ausência de escolas nos seringais: saber ler poderia levar os seringueiros a conhecer a contabilidade e questionar a exploração a que eram submetidos; e manter uma criança na escola era retirá-la do processo produtivo no qual se envolvia desde muito cedo. Na empresa seringalista tradicional somente o guarda-livros e o gerente sabiam ler, escrever e contar e o proprietário, em muitos casos, apenas tinha rudimentos de escolaridade. Por outro lado, toda a empresa girava em torno do registro contábil da produção e do consumo, transformando as contas-correntes dos seringueiros em verdadeiros fetiches, pedaços de papel que sintetizavam a vida econômica de cada trabalhador sem que eles conseguissem decifrar aquele código.
Nesse contexto, levar a educação para o seringal passou a ser o símbolo da verdadeira libertação dos seringueiros em relação ao antigo sistema e da efetiva autonomia frente aos patrões. Mais do que aprender o código da leitura, da escrita e das contas, construir uma escola representava o ínicio de um novo momento na vida daquelas pessoas. Tão forte quanto o significado da escola era o do controle sobre a comercialização, um aspecto em relação ao qual Chico Mendes sempre se referia, uma vez que liberdade significava, também, poder vender e comprar de quem oferecesse melhor preço.
Assim que a defesa da posse se tornou uma atividade consolidada entre os seringueiros de Xapuri, sob a coordenação direta e ativa do Sindicato, Chico Mendes decidiu enfrentar os dois símbolos do controle dos seringalistas sobre os seringueiros: o monopólio na comercialização e a ausência de educação. Essa foi a razão principal da criação do “Projeto Seringueiro – Cooperativa, Educação e Saúde para Seringueiros de Xapuri – Acre” iniciado em março de 1981, no Seringal Nazaré.
O Projeto Seringueiro marcou uma mudança fundamental na história recente dos trabalhadores do Vale do Acre: a passagem da fase de resistência para a de proposição e implantação de alternativas econômicas e sociais, com benefícios diretos e imediatos para os seringueiros. Foi uma iniciativa de Chico Mendes que marcou, também, seu estilo de liderança, o de fazer alianças com pessoas e instituições que poderiam contribuir para tornar realidade suas expectativas de mudança.
Primeiro dia de aula
Dia 22 de maio de 1982, sábado, foi o primeiro dia de funcionamento da escola. Estávamos tão emocionados quanto os seringueiros que iam começar a aprender a decifrar um código novo e que tantas vezes servira para dominá-los. Tudo preparado, passamos a imaginar outras escolas funcionando, outras cooperativas, mais pessoas envolvidas em um trabalho tão gratificante como aquele.
O dia amanheceu chovendo muito. Quando cai uma chuva na floresta, pode-se prever que algumas árvores vão cair, vai ficar tudo alagado, intransitável. E foi assim. Naquele dia não parou de chover. E à medida que o tempo passava, pensamos que talvez o pessoal não pudesse vir. Fica muito difícil andar pelos varadouros com lama e muitos moravam longe. Além disso, os seringueiros não costumam utilizar nenhum tipo de agasalho contra a chuva. Esperam passar e aí saem de um lugar para o outro. Ou tomam chuva mesmo.
Perto do meio-dia, quando parou um pouco a chuva, chegaram dois seringueiros – Demétrio e Raimundo Chagas, trazendo os quadro-negros. Instalamos e a escola ficou pronta. Sem que a chuva desse uma folga, às 4:00 começaram a chegar os outros. Molhados, todos carregando um saco encauchado – impermeabilizado com caucho – com uma roupa seca dentro, a melhor que cada um tinha.
Já estava escuro e a chuva continuava forte, quando chegaram os mais novos, completamente molhados: dois rapazes de 12 anos, que já são seringueiros e duas meninas, de 14 e 12 anos. Foram ao igarapé, tomaram banho, trocaram de roupa e estavam todos prontos. Nove pessoas, nesse primeiro dia.
Mas antes de começar a estudar, era preciso comer. Alguns haviam andado mais de sete horas para chegar, estavam famintos. A comida, já preparada, foi servida e depois do jantar fomos para a varanda da casa. O aladim aceso, começamos a conversar sobre nossa escola. Todos receberam uma pasta com a Poronga, lápis e borracha. Olharam, abriram e começaram a reconhecer no material os elementos presentes na vida da mata: a poronga, o tapiri, a caça. Muitos nunca tinham visto uma pasta com elástico, não sabiam como abrir. Outros começaram a olhar a Poronga de cabeça para baixo… Começamos então a conversar sobre o nome do livro do seringueiro.
A Poronga
Não havia um material didático que pudesse ser utilizado na alfabetização de seringueiros. A especificidade da vida na mata, o linguajar, o modo de pensar, as palavras usadas no cotidiano, precisavam fazer parte de um livro de educação de adultos especialmente produzido para eles.
Poronga foi o nome escolhido para o material de alfabetização e primeiras contas para seringueiros. É uma lamparina que os seringueiros carregavam na cabeça, no passado, quando cortavam seringa à noite. Ainda hoje utilizam quando andam à noite na mata, quando vão caçar ou pescar. Como eles mesmos afirmaram, “do mesmo jeito que a poronga alumia a estrada pro seringueiro cortar, de madrugada, o livro vai alumiar nossas idéias”.
O tema central da Poronga era a organização dos trabalhadores rurais no Acre, em especial dos seringueiros e a caminhada em busca de autonomia econômica e política, através do fortalecimento dos Sindicatos, da luta pela terra e da consciência de serem eles agentes da construção de uma nova sociedade.
Era um pensamento influenciado pelas observações de Chico Mendes:
A condição de isolamento dos seringais, dificultando o processo de comunicação e organização destas famílias tem causado uma grande preocupação para a Diretoria do STR de Xapuri. O município de Xapuri conta com 65% de trabalhadores rurais entre pequenos agricultores e seringueiros na condição de analfabetos, daí a grande concentração dessa categoria como membros do Sindicato. Os órgãos competentes justificam a falta de acesso e transporte para chegarem até estas comunidades, e isto só tem causado atraso ao desenvolvimento de nossas comunidades pois estas famílias ficam isoladas. Numa situação de desinformação e falta de apoio, tornam-se alvo fácil de manipulação tanto pelos fazendeiros como para os atravessadores.
Este tema geral foi subdividido em temas geradores que deram origem às palavras geradoras: a questão do saber, o saber do seringueiro e o aprendido na escola; o sistema tradicional de exploração do trabalho do seringueiro, o seringueiro cativo; o seringueiro liberto e sua forma de organização social; a luta por novas condições de trabalho, o Sindicato, a cooperativa e o partido; o direito à alimentação e à saúde; a natureza e a cultura, o homem transformando a natureza pelo trabalho; o projeto de vida do seringueiro.
O método era fortemente incluenciado pela filosofia de Paulo Freire e buscava responder a duas necessidades: valorizar o saber do seringueiro, resultado de sua própria história e dar a ele informações necessárias para encontrar autonomia política e social, ou seja, para raciocinar criticamente sobre a sociedade em que vivia; a outra, era o domínio do cálculo matemático, fundamental para realizar, por conta própria, a comercialização. Para isso, o material estava voltado para a decodificação de uma conta-corrente tradicional de um barracão. Ou seja, como se formava o débito e o saldo e quais operações matemáticas estavam ocultas naquele processo tão obscuro que sempre levava ao endividamento.
O primeiro exercício da escola era exatamente a discussão sobre o significado da cartilha Poronga na vida dos seringueiros. A gravação, transcrita a seguir, foi feita em uma aula com dois novos alunos que começaram a estudar no dia 3 de junho, Chico Marinho e Alzira, sua mulher, e traduz perfeitamente o tipo de diálogo que caracterizava o trabalho na escola do Nazaré:
Mary: Aqui na frente do livro de vocês tem essa figura, aqui. O que o sr. acha que essa figura diz?
Chico Marinho: É um seringueiro com uma poronga na cabeça.
Mary: Prá que serve a poronga?
C.Marinho: Prá alumiar prá cortar a seringa.
Alzira: Quer dizer… que ela serve prá tudo, né. Em qualquer canto que a pessoa tá aperreado, né, que não tem luz, a gente se serve dela. Na cozinha, né. É como uma lamparina.
Mary: O Sr. usa poronga?
C.Marinho: Uso não.
Mary: Não gosta de usar?
C.Marinho: É porque eu inda não… não deu condições de eu comprar. Agora eu fui, lutei prá ver se trazia uma, né, comprava uma, mas não deu condições.
Mary: Mas o Sr. gosta de usar?
C.Marinho: Eu gosto de usar porque tem muita serventia. Porque às vezes a gente vai numa viagem, à noite, ou entonce a gente, na luta que vive, de espera, de noite, entonce a gente sempre sai prá esperar (caçar), leva ela, deixa ali do lado, quando desce da espera já vem com ela acesa. De forma que ela tem muito prestígio, ajuda muito o trabalhador rural.
Mary: Então, a poronga é importante pro seringueiro… Então esse livro, que é o livro do seringueiro, ele chama Poronga. Aqui em baixo, nessas letras, está escrito Poronga. Agora, por que será que a gente chamou o livro do seringueiro de Poronga?
C.Marinho: Aí eu não tô a par… diretamente.
Alzira: Eu vou dizer uma doidera (risos). Porque ele é seringueiro.
Mary: A poronga serve prá que?
Alzira: Prá alumiar.
Mary: E o livro?
C. Marinho: Prá estudar.
Mary: Então, por que será que chama Poronga?
C.Marinho: Bom. É o sentido, o sentido de chamar o livro Poronga é o sentido que nós estamos no escuro por não saber ler. Entonce, vem o livro com as iniciais da Poronga fazendo a representação que é uma claridade, aquele livro é uma claridade que vem nos dar sobre o que trás prá o ensino nosso, né.
Mary: Se a poronga alumia a estrada pro seringueiro, então vamos ver se o livro e a escola ajudam o seringueiro na caminhada dele.
Quando terminamos o trabalho, naquele sábado, eram quase onze horas da noite. Os homens armaram suas redes na sala de aula, as meninas na cozinha, e eu, da minha, podia ver alguns com a Poronga na mão, olhando; escutava outros soletrando. Quase não dormi. Além de estar muito emocionada, chovia muito. A sensação de isolamento era grande: os igarapés vão ficando cheios, não dá prá passar, troncos de árvore caem interrompendo os varadouros e o barulho dos paus caindo, da taboca estalando, parecia, às vezes, um tiroteio. Só me tranquilizei quando comecei a prestar atenção num programa transmitido por uma rádio latino-americana, com entrevistas de estudantes e professores sobre a situação da educação. A programação da rádio encerrou tocando a Heróica de Beethoven, que me pareceu bastante adequada para uma noite de tempestade na floresta.”
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